domingo, 18 de julho de 2010

A casa



O tempo escorre abrasador pelas ruas daquela terra. As pessoas nem dão por isso. Respiram sem saber, choram sem saber, são felizes sem saber...simplesmente porque não deriva nada daquele tipo de conhecimento. Nada deriva da eterna angústia existencial, senão os rebentos de uma dor sentida, despropositada e embaraçosa. A existência escorre simples nas veias daquela gente. Não se concebem sem ser como são, não se apercebem do que está para além das sebes fronteiriças, mas também não é preciso. O sentimento que lhes vem à pele é imediatamente reconhecido. Sem questões, sem pressas, sem dor. É um ser quase sem sentido que os move. E são estranhas as figuras presentes nas ruelas daquela terra. Mas rasga-os um medo. Um medo antigo, um medo sem nome, sem rosto e sem vida. O pavor esventra ruidosamente a fé daquela gente. É que não sabem como, nem desde quando, mas no centro daquela terra, uma casa habita-se a ela própria. Está vazia, está velha e impõe-se a quem lhe passa em frente. Um silêncio de sepulcro, uma fachada cortada por dezenas de janelas enfileiradas, partidas e constantemente trespassadas por um ar simplório, uma simetria etérea, um jardim que o tempo secou, um portão entreaberto que convida ao pensamento mágico. E são estranhas, são misteriosas e raramente vistas as coisas que habitam esta casa. Diz-se, na aldeia, que há muito tempo atrás, e nem sabem eles como o tempo foi passando sem lhes passar pelas vistas, uma mulher ali morreu e mais os seus três filhos, aparentemente de uma morte não esperada, repentina e não abençoada. Sem marido, por imposição das circunstâncias matrimoniais e da vida, a mulher morta e os filhos cadáveres, agora, outrora inundados de sangue vivo, viviam sem ter do que reclamar, sem saber, como a outra gente, o que há depois do limite, o que se estende para além do que os olhos alcançam e do que os ouvidos ouvem....mas não eram como os outros, e por não serem como os outros, a morte foi-lhes anunciada ao nascimento, pois que qualquer um dos quatro, a mãe por pecado próprio, e os filhos pela hereditariedade da blasfémia, estavam irremediavelmente marcados pelo estigma de serem únicos. E único é também este relato simples, de uma simples terra que o tempo não esqueceu e marcou e de estranhas pessoas, a quem um crime antigo e calado estremece as entranhas e as marca até aos dias que correm. Esta é também a estória desta casa, do que ela viu dentro das suas muralhas e do que o mundo, as gentes que não sabem e as estações repetidas silenciaram.

3 comentários:

  1. Muito bom...quem diria que o resultado fosse este;P

    ResponderEliminar
  2. Muito bom..quem diria que o resultado final fosse este:P

    ResponderEliminar
  3. Excelente!
    E não é fácil "dar vida" a uma casa, mesmo que seja através da morte.

    ResponderEliminar