domingo, 26 de julho de 2009

O testamento vital

O CNECV emitiu o seu parecer, desde já desfavorável, sobre o projecto lei Nº788/X, apresentado pelo grupo parlamentar do PS e aprovado no parlamento em Maio, tendo a discussão do referido projecto sido adiada para a próxima legislatura. Este projecto-lei visa a "dignidade do doente, no que respeita à prática de actos médicos, garantindo um permanente equilíbrio entre a liberdade individual e o desenvolvimento da biologia e da medicina na prática médica e o carácter personalizado da relação médico-doente." Basicamente, era com este suposto documento que se regularizaria, em termos jurídicos, o chamado testamento vital, não obstante o facto de não se perceber o que de "vital" e o que de "testamento" tem o referido projecto. Creio que o termo "declaração antecipada de vontade" é bem mais rigoroso. Mas, nomes à parte, esta questão da declaração antecipada permite ao indivíduo, são e perfeitamente capaz, a possibilidade de deixar escrito que tipo de tratamento, acto ou conduta médica é que ele próprio permite que lhe seja feito (a), quando, por variadíssimas razões, não usufrua das suas plenas capacidades mentais, como por exemplo um estado vegetativo persistente.

O referido projecto-lei, realmente só em 2 de 24 artigos é que explicita esta questão da declaração antecipada de vontade, e fá-lo de forma bastante incompleta e imprecisa. Eis o que diz o projecto lei a este respeito:

"Artigo 14º
(Declaração antecipada de vontade)
1. Através da DAV, o declarante adulto e capaz, que se encontre em condições de plena informação e liberdade, pode determinar quais os cuidados de saúde que deseja ou não receber no futuro, no caso de, por qualquer causa, se encontrar incapaz de prestar o consentimento informado de forma autónoma.

Ao dizer-se "cidadão capaz" implica que existam cidadãos que não são capazes de fazer tal declaração. Quem são estes "não capazes"? Os alcoólicos crónicos são capazes ou não capazes? E os oligofrénicos? E as pessoas com depressão? E os doentes com depressão em tratamento? É importante que se defina quais são as características que definem a pessoa como capaz de fazer a DAV.

É essencial que se diga que os doentes, ao exercerem a sua autonomia, o fazem, não só para negar/recusar tratamentos mas também para os aceitarem. Aliás, a regra para quem faz clínica é a de que o doente "entrega" ao médico a sua vida e saúde e nele confia. Esta é também uma forma de exercer a autonomia de uma maneira não negativista como o documento, ás vezes, parece traduzir.Obviamente que desta "autonomia" e lógica do "o Sr. dr é que sabe" advém a conduta paternalista do médico, mas isto, é outra questão. A pedra angular da relação médico-doente é pois a confiança, e não propriamente a autonomia do doente exercida ao extremo de quem, por não ser a sua formação, não sabe o que é melhor para ele, se o tratamento X ou Y, se o fármaco A ou B ou C ou a combinação destes. É extremamente difícil o exercício pleno da autonomia, apesar do conceito em si ser mais do que lógico e sendo ele aliás um dos princípios éticos base em Medicina. O que questiono não é o conceito de autonomia, obviamente que defendo que todos os doentes devem ser informados e devem decidir, mas não se pode levar o conceito para o extremo, como que querendo passar toda a responsabilidade da decisão para o doente. Isto é particularmente válido em situações de urgência. Como exerce a autonomia uma pessoa que entra na urgência em paragem cardiorrespiratória? Há tempo para informar o doente sobre os riscos de uma cirurgia de reparação de um aneurisma da aorta abdominal que rompeu, dando todos os ingredientes para uma decisão ponderada e exercício pleno da autonomia?

Continuando com o documento:

" 5. A eficácia vinculativa da DAV depende (...) do grau de conhecimento que o outorgante tinha do seu estado de saúde, da natureza da doença e da sua evolução; do grau de participação de um médico na aquisição desta informação; do rigor com que são descritos os métodos terapêuticos que se pretendem recusar ou aceitar; da data da sua redacção; e das demais circunstâncias que permitam avaliar o grau de convicção com que o declarante manifestou a sua vontade"

A DAV não só diz respeito a procedimentos médicos que o doente recusa mas também a procedimentos que quer que lhe seja prestado. Está claro que os procedimentos que o doente quer que lhe sejam facultados podem não ser os correctos, quer em termos médicos, quer em termos sociais ou até morais. A eficácia vinculativa da DAV, conforme explicitada no projecto-lei, dá a ideia de ela poder ser, em qualquer altura, desconsiderada em face das características que enumera. Parece-me que trai o objectivo principal da DAV. Como se avalia o grau de convicção de uma pessoa que expressou um conjunto de vontades na DAV? Faz sentido sequer que se avalie isto na altura em que é a DAV que deve ser considerada? Como terá acesso o serviço de saúde à DAV de determinado doente em situação de urgência?

Estas questões que levantei estão explicitadas no parecer da CNECV. Obviamente que defendo e sou favorável à declaração de vontade antecipada e, como médico, respeito a decisão do meu doente informado. Creio contudo que o projecto-lei é impreciso e cravado de lacunas importantes que devem ser esclarecidas para que se construa uma lei de DAV verdadeiramente rigorosa e ética.

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