Num laivo assim mais ou menos literário, mais ou menos em tom de romance ou mais ou menos realista, proponho-me falar sobre esta estranha gente a quem chamamos, hoje em dia, médicos.
Quem, de entre nós, nunca olhou com um certo misto de admiração, repúdio e dúvida, para aquelas pessoas a quem foi atribuída a nobre missão de curar as maleitas dos outros, de salvar a vida dos outros, de deixar a sua família e os seus amigos, para salvar as famílias e os amigos dos outros ou até de os enfim, como direi, "matar" com os seus erros e enganos?
Na realidade,após passarem 6 anos na faculdade, após um pesado e cansativo exame para a especialidade, e depois de mais 5 ou 6 anos no internato para se tornarem especialistas, eis-que, após terminarem o seu caminho doloroso, lhes é pedido que salvem o maior número de pessoas que conseguirem e, se possível, que se enganem pouco ou nada, para que o número de pessoas mortas por eles seja o menor.
O seu papel é assim um pouco semelhante ao de Deus, havendo até médicos que, levados por este sentimento colossal do "acabei de lhe salvar a vida", possuem este síndrome do divino, de acharem que têm o poder em forma de conhecimento para dar ou tirar a vida. Reconheçamos realmente. que não é qualquer pessoa que, passadas 24h de urgência e chegada a casa, pode dizer "Hoje salvei 10 pessoas e perdi outras tantas". É porque os médicos têm esta nobre tarefa de serem médicos e pessoas ao mesmo tempo, de se conseguirem deslocar do seu próprio corpo, para se visualizarem no corpo dos outros, é porque salvam vidas e dos seus meros enganos, erros e distracções pode advir a morte de alguém, é por causa disto tudo que os admiramos e odiamos ao mesmo tempo.
O que é que lhes pedimos então? Pedimos-lhes coisas tão simples como, perante alguém a quem o coração parou, que façam o diagnóstico, instituam a terapêutica e recuperem a pessoa "morta" em menos de 2 minutos. Pedimos-lhes que, perante 150 doentes na urgência com tosse, que saibam discernir, às 4 e tal da manhã,após quase 20 horas de trabalho, quem de entre os com tosse tem uma simples gripe, 100,uma pneumonia,30,uma reacção adversa a medicamentos, 10, um cancro do pulmão,5 ou embolia pulmonar rapidamente fatal, 5.
Há uns meses atrás, dizia-me uma doente, já fortemente debilitada devido à agressiva terapia contra o cancro e com uma pneumonia grave bilateral, "Não se esqueça, doutor, que não há quem diga um ai e que não esteja a doer". É bem verdade isto, e nunca me esqueci. Cabe-nos então a nós, médicos, tratarmos não a anemia, a pneumonia, o cancro, o enfarte, mas sim a pessoa com anemia ou com enfarte ou com cancro. A dor trata-se com drogas, sim, mas não só. A vida dos médicos é estranha, a vida dos médicos é paradoxal e, como disse alguém importante, "a vida dos médicos não é fácil e é essencial que o não seja".